10 de julho de 2010

Quando um barraco familiar ganha a grande rede

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Na noite de 27 de junho, a advogada Vivian Almeida de Oliveira, de 34 anos, colocou na internet, em sua página da rede de relacionamento Orkut, a prova de que seu marido, o comerciante Cícero Oliveira, de 54 anos, a traíra. As imagens escolhidas por Vivian não eram de um flagrante de adultério. Por dez minutos e 18 segundos, ela aparece num vídeo caseiro falando com sua melhor amiga, a comerciante Juliana Cordeiro, de 33 anos. A conversa se desenrola na casa de Vivian. O conteúdo é hipnótico.

Vivian vai mostrando à amiga as peças de um dossiê montado por ela mesma ao longo de dois meses. São cópias de e-mails trocados entre Cícero e Juliana que confirmam que os dois mantinham um caso havia cinco anos. O vídeo mostra o momento em que a esposa traída confronta a amiga com as evidências de sua impostura – e exige explicações. São cenas difíceis de assistir e, ao mesmo tempo, é inevitável chegar ao fim uma vez que se tenha começado. O vídeo atinge um pedaço escuro da alma humana em que se misturam curiosidade, indignação, violência e prazer.

Vivian disse que, ao fazer a gravação e colocá-la na internet, só queria mostrar à sociedade de Sorocaba, cidade do interior paulista onde vive, o verdadeiro caráter da ex-amiga, que é casada com o empresário Fábio Cordeiro, de 39 anos. Mas a conversa da mulher traída com a amante do marido termina mal. Aos poucos, Vivian vai perdendo o controle, até que passa a estapear, empurrar e, finalmente, chutar Juliana caída, enquanto a cobre de insultos. Tudo isso diante da câmera ligada. E oculta.

Uma semana depois do encontro, na noite da quinta-feira 8, as imagens constrangedoras já haviam sido vistas por pelo menos 1 milhão de pessoas na internet – e o drama privado de Vivian se tornara uma novela de domínio público. Cópias e paródias do vídeo ocuparam 16 das 20 posições de peças mais vistas no YouTube brasileiro. Dali, o caso transbordou para os jornais e para a televisão. No final da semana passada, caminhava rapidamente para tornar-se um dos episódios mais vistos e comentados da internet brasileira, ainda que não envolva pessoas famosas. A mistura de traição e agressão, apresentada em clima de reality show, fez do barraco de Sorocaba, como ficou conhecido na rede, um chamariz irresistível. E constitui um exemplo contundente de como a internet pode afetar a intimidade das pessoas de forma radical. No passado, já houve no Brasil situações assemelhadas. Mas a audiência da internet não era tão grande, nem a capacidade de ver e distribuir vídeos pela rede estava tão disseminada. Tampouco eram fortes as redes sociais, que funcionaram neste caso como multiplicadoras do vídeo. A consequência é que os quatro envolvidos, até então anônimos, passaram por um julgamento público, distribuído em comentários pelo Twitter e outros fóruns virtuais. 

A audiência popular condenou Juliana, que enganara tanto o marido quanto a amiga. Condenou Cícero, que enganara a mulher mantendo um caso com a melhor amiga dela. Condenou também Fábio, por ter sido passado para trás pela mulher e pelo amigo. O rapaz chegou a ter sua masculinidade questionada. Fotos de todos os protagonistas desse drama interiorano circularam pela internet junto com o vídeo e acompanhadas de comentários cada vez mais mordazes. Vivian, a protagonista, dividiu opiniões: há quem a considere maluca, pela agressão e por ter exposto na internet uma situação que deveria ser resolvida na intimidade. E há quem tenha visto nela uma heroína, capaz de confrontar a amante do marido. Quis mostrar minha resposta à humilhação. Para verem que eu não sou uma coitada. Eu agi, disse na quinta-feira, em seu escritório no centro de Sorocaba. Seu gesto pode vir a ter consequências.

Vivian está sendo processada por Juliana, que registrou contra a ex-amiga uma queixa por lesão corporal. A vítima da traição conjugal poderá ser obrigada a indenizar a amiga que a enganou. Fui traída dentro de minha própria casa por duas pessoas em quem confiava, afirma. Os dois casais eram íntimos. Fomos padrinhos de casamento deles, e Juliana é madrinha de um dos meus filhos. Eram sempre vistos juntos em festas, bares e restaurantes de Sorocaba. Faziam viagens. Nem na lua de mel de Fábio e Juliana eles se separaram, disse.

Passamos quase uma semana juntos no Recife. Depois, eles foram para Fernando de Noronha e nós (Vivian e Cícero) para Fortaleza, diz Vivian. Os dois casais tinham apartamento no mesmo prédio no Guarujá e, há um ano, moram no mesmo condomínio. 

Se eu apenas contasse o que sabia, ninguém iria acreditar, diz Vivian. Para ela, as pessoas não conseguiriam imaginar que Juliana, casada com um jovem rico, bonito e com boas relações na cidade, iria se envolver com Cícero, um homem de pouca estatura, enrugado, que pinta os cabelos de acaju e tenta esconder a calvície. Meu marido não é nenhum modelo de beleza, afirma Vivian. Por isso, ela precisaria da confissão gravada em vídeo para se vingar. A gravação original tem pouco mais de uma hora de duração. O que se tornou de conhecimento público foi uma versão editada de dez minutos, que termina com a agressão de Vivian contra Juliana. A parte que não foi ao ar na internet contém 50 minutos de discussão posterior à conversa e à agressão e envolve os dois maridos, que chegaram à casa depois. Vivian diz que se arrepende das agressões. E também de divulgar o vídeo. Não deveria ter feito. Mas, na hora, a emoção falou mais forte. Divulguei o vídeo para o meu círculo de amigos, diz. Poucas horas depois de colocar o vídeo na rede, Vivian foi convencida pela filha a removê-lo. Mas já era tarde. Ela admite ter sido ingênua quanto à repercussão que as imagens poderiam ganhar. Não achei que tantas pessoas fossem se interessar. Diz que usa a internet apenas para conversar com amigos que vivem em outras cidades e para auxiliar seu trabalho.

As suspeitas de que Cícero tinha um caso com Juliana surgiram no começo de maio, quando Vivian descobriu que os dois trocavam mensagens pelo MSN, o serviço de mensagens instantâneas da Microsoft. Ela e o marido discutiram por causa disso, e Vivian diz que se sentiu insultada. Pediu a Cícero que ele saísse de casa. E passou a segui-lo com uma câmera. Assim, teria flagrado vários momentos íntimos entre ele e Juliana. Fiz papel de detetive, afirma ela. No dia 10 de junho, aniversário de Cícero, ele a convidou para jantar e pediu para fazerem as pazes. Ele chorou e se desculpou, diz Vivian. Ela acreditava que a traição era algo recente. Sem querer o divórcio, e por pressão dos filhos, aceitou o marido de volta. Mas o trabalho de espionagem não parou. Vivian descobriu 985 e-mails de Juliana para Cícero e mais de 870 dele para a amante. Passou uma noite em claro lendo a correspondência. Vi um e-mail em que ele dava os parabéns pelos cinco anos de namoro e chamando ela de amor verdadeiro. As provas escritas e gravadas, porém, não lhe pareciam suficientes para o divórcio. Ela acreditava que os dois poderiam alegar que os e-mails não eram deles e as gravações poderiam não servir como prova porque foram feitas sem o conhecimento dos dois. As provas eram contestáveis, diz a advogada. Daí a ideia de gravar clandestinamente a confissão de Juliana. Eu liguei para ela e disse: Aí, Ju, tô em casa sozinha, tô mal. Você não pode vir aqui conversar? Ela disse: Claro, tô subindo. O resto já se sabe.

Ao gravar e publicar a conversa que teve com a amante de seu marido, sem o conhecimento dela, Vivian feriu o Artigo 20 do Código Civil, que proíbe a divulgação de imagens que ofendam de alguma forma a honra e a respeitabilidade de outra pessoa. É um crime que acarreta pena de prisão. E há mais. Vivian infringiu o Código Penal em outros dois artigos: lesão corporal, para a qual se prevê pena de detenção de três meses a um ano, e crime de difamação, que prevê a mesma pena, com um agravante. A lei prevê o aumento de um terço do castigo se o crime foi cometido em um meio que facilite a divulgação da difamação. Como o vídeo foi postado na internet e em sites que têm milhões de visitantes por dia, o juiz pode levar isso em consideração. Contra ela, diz Rony Vainzof, sócio do escritório de advocacia Opice Blum.

Modernamente, a difamação deixou de acontecer em praça pública ou por cartas anônimas e migrou para a internet, diz a delegada Catarina Burque, da Delegacia de Repressão a Crimes Cometidos por Meios Eletrônicos, de São Paulo. O poder multiplicador da rede e sua rapidez dão eficiência nunca vista à intenção de prejudicar alguém. Segundo Catarina, pelo menos 70% dos cerca de 1.000 inquéritos que estão em andamento hoje na delegacia tratam de crime de difamação. No geral, são semelhantes ao caso de Vivian – alguém tentando denegrir a imagem de outra pessoa, por vingança ou qualquer outro motivo. São muito frequentes os casos em que ex-namorados ou ex-namoradas publicam fotos ou vídeos com cenas de sexo ou poses eróticas feitos durante o período do namoro, afirma Marcel Leonardi, advogado especialista em crimes digitais e professor da Fundação Getulio Vargas, de São Paulo.

Um dos complicadores quando se discutem privacidade e difamação na internet é a anarquia que reina na rede. Se alguém publica uma história num jornal ou revista, torna-se responsável por ela. O mesmo acontece com rádios e TVs. Mas na internet a responsabilidade dos divulgadores é quase nula. O que significa, na prática, que pessoas anônimas usam sites como o YouTube para colocar no ar o que bem entendem – contenha ou não material difamatório. Seja ou não fruto de comportamento antiético ou ilegal. O Google não pode decidir o que é ofensivo ou não, afirma Felix Ximenes, diretor de comunicação e assuntos públicos do Google Brasil.

Colocar coisas no ar demora um minuto. Para tirá-las, é preciso uma ordem judicial. Há dois caminhos para conseguir uma. Acionar uma delegacia especializada e esperar seis meses, em média, até a conclusão do inquérito. Ou contratar um advogado (o serviço não sai por menos de R$ 5 mil) para reunir provas e tentar uma liminar, que sai em cerca de 72 horas. Ainda que depois de algum tempo o YouTube ou outro provedor retirem do ar as imagens ofensivas, já é tarde. O estrago está feito. Não há como controlar os usuários de internet do mundo inteiro que podem se apossar de um vídeo e reproduzi-lo em outros sites ou enviá-lo para amigos por e-mail. Aliás, as pessoas que fizeram isso com o vídeo de Vivian também podem ser responsabilizadas pelo crime de difamação. Um post difamatório na internet é um dano permanente, como um braço amputado, afirma Leonardi. Vivian, seu marido e a amante descobriram isso na pele.

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Essa reportagem foi produzida pela Revista Época e apenas reproduzida pelo Conexão Espetacular. Leia a íntegra do texto no site da publicação.